A velhice: algumas considerações teóricas e conceituais - Siqueira, Botelho & Coelho

02/10/2013 00:00

Ciência & Saúde Coletiva – ISSN 1413-8123 - Ciênc. saúde coletiva vol.7 no.4 São Paulo 2002

A velhice: algumas considerações teóricas e conceituais

The old age: some theoretical and conceptual considerations

Renata Lopes de Siqueira1; Maria Izabel Vieira Botelho1;

 France Maria Gontijo Coelho1

Departamento de Economia Rural da Universidade Federal de Viçosa, 36570-000

Campus Universitário, Viçosa MG

 

ABSTRACT

In this study, a discussion is accomplished on some papers concerning to the aging phenomenon, whereas looking for the identification of different analysis perspectives: on the "biological/behavioral" perspective are those studies fundamentally related to the physiologic aging process. The "economicist" perspective is focused on the economic impact of the social aging, by analyzing the matters related to the demand for health services and social welfare benefits. On the perspective of the "sociocultural" character, the old age is understood as a social construction, and the papers discuss the possible forms for its representation. The fourth perspective, "transdisciplinary", represents a dimension trying to contemplate a set of different-natured aspects (biological, economic, sociocultural) pointed out in the previous perspectives. Therefore, considering the complexity of the old age reality and the difficulties to approach theoretically and methodologically the hole theme, this paper concludes that there is not possible to decide which perspective is more appropriate to analyze the aging phenomenon, and appoints the necessity of a deeper and wider debate about the theoretical and practical implications of each perspective.

Key words: Populational aging, Old age, Epistemology

 

RESUMO

Neste artigo procede-se ao exame de algumas obras que discutem o envelhecimento, buscando analisar as diferentes perspectivas de análise: na perspectiva "biológico/comportamentalista" discutem-se aqueles estudos que se ocupam do processo de envelhecimento fisiológico. Na perspectiva "economicista" analisa-se o impacto econômico do envelhecimento social, discutindo questões relativas à demanda por serviços de saúde e benefícios previdenciários. Na perspectiva "sociocultural", a velhice é entendida como uma construção social e se reflete sobre as possíveis formas de representações desta. A quarta perspectiva, "transdisciplinar", representa uma dimensão que se esforça em contemplar o conjunto dos aspectos (biológico, econômico, sociocultural) apontados nas perspectivas anteriores. Considerando o grau de complexidade da realidade acerca da velhice e as dificuldades teóricas e metodológicas de contemplá-la na sua totalidade, este trabalho conclui por um impasse sobre qual seria a perspectiva mais apropriada para analisá-la, e aponta para a necessidade de se ampliar e aprofundar o debate sobre as implicações teóricas e práticas relativas de cada perspectiva.

Palavras-chave: Envelhecimento populacional, Velhice, Epistemologia

 

Introdução

Nas últimas décadas observou-se um nítido processo de envelhecimento demográfico. A Organização das Nações Unidas (ONU) considera o período de 1975 a 2025 a Era do Envelhecimento. Nos países em desenvolvimento, esse envelhecimento populacional foi ainda mais significativo e acelerado, destaca a ONU: enquanto nas nações desenvolvidas, no período de 1970 a 2000, o crescimento observado foi de 54%, nos países em desenvolvimento atingiu 123%.

No Brasil, segundo dados do IBGE, na década de 1970, cerca de 4,95% da população brasileira era de idosos, percentual que pulou para 8,47% na década de 1990, havendo a expectativa de alcançar 9,2 em 2010. De acordo com Cançado (1996), o aumento do número de idosos também tem sido acompanhado por um acréscimo significativo nos anos de vida da população brasileira. A esperança de vida, que era em torno de 33,7 anos em 1950/1955, passou para 50,99 em 1990, chegou até 66,25 em 1995 e deverá alcançar 77,08 em 2020/2025.

Esse processo de envelhecimento demográfico repercutiu e continua repercutindo nas diferentes esferas da estrutura social, econômica, política e cultural da sociedade, uma vez que os idosos, da mesma forma que os demais segmentos etários (crianças, jovens e adultos), possuem demandas específicas para obtenção de adequadas condições de vida. Tais demandas fizeram da velhice tema privilegiado de investigação nas distintas áreas de conhecimento, elevando substancialmente o volume de obras publicadas nos últimos tempos.

Contudo, a constatação da ausência de estudos que abordem as implicações teóricas e práticas relativas a essas obras conduziu a formulação do presente artigo. O objetivo deste é proceder a uma reflexão sistemática de alguns desses estudos sobre a velhice, buscando identificar os elementos que fundamentam as diferentes perspectivas de análise e sua relevância para a atual conjuntura da sociedade.

 

Metodologia

Foram revisadas 19 obras publicadas a partir da década de 1970, quando Simone de Beauvoir, filósofa francesa, denunciava a "conspiração do silêncio'' ou o descaso com que era tratada a velhice naquela época. Esse conjunto de obras incluiu publicações de distinta natureza, a saber: livros especializados, artigos em revistas científicas e dissertações de mestrado e doutorado. Nessa revisão não foram consideradas publicações de caráter não científico (artigos de jornais, folhetos, romances, etc.).

Conforme se mencionou anteriormente, o interesse sobre o tema do envelhecimento acentuou-se significativamente nas últimas décadas, e mesmo não dispondo de estatísticas específicas, pode-se inferir que inúmeras foram as obras publicadas. Diante desse fato, compreende-se que seria tarefa extenuante, pouco prática e, talvez, impossível ler todas essas obras para poder discorrer sobre o assunto. Nesse sentido, uma seleção tornou-se atividade impositiva, executada a partir de critérios que, geralmente, deveriam orientar qualquer investigação científica: a autoridade dos autores sobre o assunto (sua experiência e titulação), o número de edições da obra, a data da publicação (exceção feita para os clássicos, cuja atualidade permanece), as novas contribuições que a obra trouxe sobre o assunto, a bibliografia empregada e as indicações dos pares.

Entretanto, como este artigo deriva de uma dissertação de mestrado cujo objetivo foi investigar especificamente a experiência da velhice no contexto rural brasileiro, priorizaram-se as publicações nacionais, constituindo-se em uma exceção o estudo da obra A velhice: realidade incômoda, de autoria de Simone de Beauvoir. A exceção concedida a essa obra justifica-se pela relevância que adquiriu nos estudos sobre a velhice; estima-se que, aproximadamente, 8 entre 10 trabalhos nas décadas de 1980 e 1990 usaram Beauvoir como referencial teórico.

Conforme o conteúdo analisado, essas obras foram agrupadas em quatro perspectivas de análise, a saber: "biológico/comportamentalista", "economicista", "socioculturalista" e "transdisciplinar". Convém destacar que essas perspectivas apontadas não se originam de uma definição dos próprios autores, mas foram aqui definidas a partir da observação dos elementos priorizados por estes, na busca do conhecimento do processo de envelhecimento. O objetivo dessa sistematização, em diferentes perspectivas de análise, foi tornar mais didática e explícita a dissertação.

 

Desenvolvimento e discussão

A primeira perspectiva, que se denominou "biológico/comportamentalista", orienta as ações de gerontólogos e geriatras e coloca sua ênfase no processo de decrepitude física ocasionada por fenômenos degenerativos naturais do organismo. Nessa perspectiva, os idosos aparecem como portadores de múltiplas patologias sobre as quais os indivíduos e a sociedade devem atuar no sentido de retardá-los.

Os estudos de Chaimowicz (1987) constituem exemplos de trabalhos que se enquadram nessa perspectiva. Após analisar os processos de transição demográfica e epidemiológica no Brasil, no final dos anos 90, o autor buscou caracterizar a situação de saúde dos idosos no país. Por meio de informações originadas dos censos demográficos de 1991 a 1996, de Pesquisas Nacionais por Amostras de Domicílio (PNADs), e de estudos transversais, realizados pelo próprio autor nas regiões metropolitanas das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, Chaimowicz constatou que, em média, o número de patologias crônicas ­ como a osteoartrite, dispnéia ao esforço ou diminuição da acuidade visual ­ que acometem os idosos é muito elevado (o número de casos registrados salta de 4,6 para 5,8 entre os 65 e 75 anos de idade).

Outro estudo, citado por Chaimowicz (1987), revelou, mediante inquérito domiciliar realizado em amostra aleatória de 1.602 indivíduos com 60 anos ou mais do município de São Paulo, em 1989, que apenas 14% dos entrevistados consideravam-se livres de doenças crônicas como hipertensão, diabetes, asma, reumatismo, derrame e insônia. Dentre os grupos de menor poder aquisitivo, 17% dos idosos referiram-se à presença de pelo menos cinco condições simultâneas, e um terço foi considerado possível, caso no screening de saúde mental. Em subamostra da mesma população, um terço dos indivíduos também relataram (...) dificuldades na conversação devido a problemas auditivos (...) e 63% apresentavam deficiência auditiva, quando submetidas ao exame audiológico. Chaimowicz (1987) citou também um inquérito sobre saúde bucal, realizado no município de São Paulo, no qual foi demonstrado que os idosos possuíam, em média, apenas dois dentes sadios e, especialmente dentre os de baixa renda, era elevada a freqüência de lesões periodontais e problemas relacionados com uso de próteses sem manutenção adequada.

Pode-se observar que os estudos incluídos nessa perspectiva "biológico/comportamentalista" usam como justificativa ao seu desenvolvimento dados quantitativos que revelam um envelhecimento populacional decorrente de um processo de transição demográfica, definida por uma inversão da pirâmide etária populacional, na qual se observa um estreitamento da base, ocupada pelas categorias etárias mais jovens, e um alargamento do ápice, ocupada pela população mais idosa.

Conforme explicaram Barreto (1992) e Palma (2000), essa transição demográfica origina-se não apenas de avanços tecnológicos na área de saúde, os quais impliquem aumento da expectativa de vida, mas, principalmente, da redução na taxa de fecundidade.

Em correlação direta com esse processo de transição demográfica, os estudos apontam outro processo de transição, a epidemiológica, que, segundo Veras (1994), constitui uma (...) alteração nos padrões de moléstia (...). Conforme explicou esse autor, a prevalência de doenças de intervenção primária, como as infecto-contagiosas, passam a ser substituídas por quadros patológicos mais complexos e de intervenção mais cara (necessitam de pessoal qualificado, equipe multidisciplinar, equipamentos e exames complementares de alto custo), como as doenças crônico-degenerativas e distúrbios mentais, tais como patologias cardiovasculares, câncer e stress, que acometem, predominantemente, a população idosa.

Nesse sentido, a perspectiva "biológico/comportamentalista" analisa não somente aspectos relativos a alterações fisiológicas do organismo, mas também mudanças no perfil populacional e a forma como as políticas públicas de saúde reagem ou deveriam reagir em relação a elas, chamando atenção para a questão do envelhecimento populacional como um problema de Estado. Conforme analisou Chaimowicz (1987), houve modificação do perfil de saúde da população; em vez de processos agudos que se resolvem rapidamente por meio da cura ou do óbito, tornaram-se predominantes as doenças crônicas e suas complicações, o que implica longos períodos de utilização de serviços de saúde.

Dessa forma, quase que unanimemente, esses estudos concluem que o processo de envelhecimento populacional constitui, também, um problema social que requer medidas urgentes por parte do governo e da sociedade em geral. A importância da efetivação dessas medidas deriva da grande e dispendiosa demanda dos serviços de saúde, que no Brasil, historicamente, atende de forma insuficiente à população em geral.

Na segunda perspectiva de análise, que se designou por "economicista", tem-se um leque ampliado de representantes. Além de gerontólogos e geriatras, tomam a palavra também os cientistas sociais. Nessa perspectiva, as investigações preocupam-se em situar o lugar dos velhos na estrutura social produtiva, centrando as análises na questão da ruptura com o mundo produtivo do mercado de trabalho, especificamente, na questão da aposentadoria.

Nesse momento, a velhice passa a ser delimitada não mais pelas transformações fisiológicas, mas por um advento social, a aposentadoria, na qual o indivíduo passa pela transposição da categoria de trabalhador para ex-trabalhador; de produtivo para improdutivo; de cidadão ativo para inativo. Observa-se um processo de generalização da aposentadoria, que, de acordo com Salgado (1997), (...) cria um princípio de identidade para a velhice, definindo esse tempo da vida pela inatividade.

Para melhor compreender esses estudos é relevante explicitar que a ruptura com o mercado do trabalho tem menos relação com uma base biológica conectada ao avanço da idade, do que com uma forma de estrutura social de produção, de demanda e distribuição de postos de trabalho. A aposentadoria, conforme Salgado (1997), (...) decreta funcionalmente a velhice, ainda que o indivíduo não seja velho sob o ponto de vista biológico (...) é uma forma de produzir a rotatividade de mão-de-obra no trabalho, pela troca de gerações.

Nessa perspectiva, nota-se uma mudança no discurso. A aparente neutralidade do discurso biomédico anterior vai adquirindo contornos políticos. O entendimento do idoso como ex-trabalhador faz com que os estudos adquiram matizes que vão da simples simpatia (Simões, 1998; Haddad, 1993) à adesão explícita à luta dos aposentados, em que os autores se assumem como militantes de movimentos institucionais organizados pelo segmento de aposentados e pensionistas (Araújo, 1995, 1998; Lourenço, 1992). Nesses estudos, os idosos são apresentados como cidadãos que devem lutar por seus direitos assegurados por lei.

No extremo, o envelhecimento deixa de ser uma interrupção da vida em sociedade para passar a outra forma de ação social. Nessa nova forma de ação social, os idosos, "representados" pelo Movimento dos Aposentados e Pensionistas (MAP), defrontam-se com três instâncias: na primeira, embatem-se com os trabalhadores da ativa, caracterizando aquilo que Simões (1998), oportunamente, batizou de (...) conflito de gerações trabalhistas (...). No confronto, o interesse de trabalhadores da ativa, representados pelos sindicatos, diverge do interesse dos aposentados. Esse conflito de interesses está retratado no discurso dos aposentados militantes: (...) [os trabalhadores da ativa] se esquecem que um dia também vão ficar velhos (...) o aposentado hoje está no fim da vida e a Previdência vai responder pela sobrevivência do trabalhador que vai se aposentar amanhã (...) [as lideranças sindicais não percebem] que se não mudarem, vão passar pela mesma coisa, [ou] talvez nem cheguem a se aposentar (...) esse problema da Seguridade Social diz mais respeito aos trabalhadores da ativa que a nós (...) em vez de atentarem para o problema as centrais sindicais só competem entre si e tentam manipular os aposentados tratando-os como coitadinhos (depoimento do senhor Antônio Galdino, citado em Simões, 1998).

Na segunda instância, os aposentados defrontam-se com o Estado, acusado de ser o principal responsável pela situação marginal vivenciada pelos idosos na sociedade. Essa situação é apontada como fruto de um descaso político, do mau gerenciamento do sistema previdenciário e da propagação de uma ideologia dominante que pretende homogeneizar as diferentes formas de vivenciar a velhice.

Os estudos que tratam desse embate apontam o tratamento a-histórico dado à velhice, conforme se pode observar no trabalho de Haddad (1993). Essa autora, a partir de entrevistas realizadas com membros da Confederação Brasileira de Aposentados e Pensionistas (Cobap), analisou os direitos constitucionais garantidos aos aposentados e o trabalho de assistência à velhice, realizada pelo Serviço Social do Comércio (Sesc), e concluiu que (...) a característica fundamental da ideologia da velhice, nas sociedades tradicionais e contemporâneas, repousa em sua a-historicidade, em ocultar e desconhecer os diferentes modos de viver, sofrer e suportar a velhice (Haddad, 1993).

Na análise da pauta das reivindicações do Movimento dos Aposentados e Pensionistas (MAP), as investigações destacam como preocupações recorrentes o baixo valor das aposentadorias, a aplicação de índices de correção monetária devastadores destas, o desvio de verbas, a corrupção e a má administração do sistema previdenciário. O MAP ganhou expressão em nível nacional, no início da década de 1990, mais precisamente nos dois primeiros anos em que se desenrolou uma luta por um reajuste no valor das aposentadorias equivalente ao concedido ao salário-mínimo, de 147%, e negado pelo governo Collor. Essa medida, considerada inconstitucional, levou milhares de aposentados e pensionistas às ruas para reivindicar seus direitos, de onde retornaram, por intervenção judicial, vitoriosos.

Além de confrontar-se com os trabalhadores da ativa e com o Estado, em uma terceira instância os aposentados defrontam-se com as ações tutelares dos grupos de Terceira Idade, cujas propostas de lazer e recreação para idosos, de acordo com dirigentes do MAP, enfraquecem e desvirtuam interesses concretos, "o sentido de luta" desse segmento etário. Contudo, Simões (1998), ao analisar uma preleção de um militante do movimento durante uma aula pública proferida sobre o tema "idosos", constatou que em relação aos grupos de Terceira Idade, a posição desses dirigentes era ambígua, porque naquele momento ressaltava-se a importância de uma aliança entre aposentados, pensionistas e idosos: (...) dentro desta sociedade contraditória, desta sociedade de interesses, o estado não está a serviço do desenvolvimento e do interesse social, mas sim voltado para interesses outros que não atingem a necessidades básicas da população de idosos, aposentados e pensionistas. Portanto ninguém irá resolver nossos problemas se não tivermos capacidade para isso. E nós temos. Os idosos têm, os aposentados têm, os pensionistas têm. E demonstramos isso na luta em defesa do direito dos 147% e na luta em defesa da Previdência Social (depoimento do senhor Antônio Galdino, citado em Simões, 1998).

Além de transparecer na questão entre a rejeição e o apoio às formas de atuação dos grupos de Terceira Idade com a população idosa, a posição ambígua do MAP era percebida também na própria questão da identidade de seus membros. Nos momentos de confronto com os grupos de Terceira Idade, o idoso é "o outro"; já no confronto com o Estado, o idoso passa a ser ele próprio, reivindicando o direito a um descanso violado pelo governo: (...) quando eu me aposentei pensei que ia descansar (...) de 79 a 84 o governo passou a reajustar os aposentados com a inflação do salário-mínimo anterior então eu entrei quando vi essa defasagem. (...) Eu entrei na minha associação para lutar. De lá da associação eu vim para a Federação e fui eleito secretário-geral. (...) Que a gente vai ficando velho nessa luta aí e chega um tempo que eu num sei se vai ter forças (...) (depoimento do senhor Urbano França, citado em Haddad, 1993).

Em outra vertente de análise, mas ainda tomando como referência central a questão da aposentadoria, surgem aquelas investigações cujo objetivo é analisar e avaliar os chamados Programas de Preparação para a Aposentadoria (PPAs), normalmente implementados por instituições privadas que têm como finalidade, segundo Salgado (1997): a) dar aos futuros aposentados condições de explorarem suas possibilidades, expectativas e desejos; b) informar sobre as condições de vida futura dos candidatos à aposentadoria; c) modificar as reações contra a aposentadoria e incutir na consciência a necessidade de planejá-la adequadamente; d) ajudar os aposentados a reconhecerem que o processo permanente de educação pode contribuir para o desenvolvimento psicossocial de suas vidas, estabelecendo novos desafios que valorizarão a própria existência.

Pode-se observar que, nesse momento, as propostas aproximam-se da perspectiva "biológico/comportamentalista" apresentada anteriormente, porque o velho retoma a condição de sujeição, como indivíduo que precisa ser "auxiliado" por profissionais aptos a promover a sua "reinserção social", depois da ruptura ocasionada pelo advento da aposentadoria.

Outro ponto de convergência dessas duas perspectivas de análise ­ a "biológico/comportamentalista" e a "economicista" ­ é que, tanto na primeira quanto na segunda, a justificativa apresentada para maiores investimentos na questão da velhice reside na preocupação recorrente de que o envelhecimento demográfico irá sobrecarregar os cofres públicos, agora não só pela alta demanda dos serviços de saúde, mas também do sistema de Previdência Social.

Na terceira perspectiva de investigação sobre a velhice, os trabalhos de alguns cientistas sociais (antropólogos, sociólogos, historiadores) refletem um modelo de análise que se caracteriza por uma ênfase sociocultural que critica os focos das preocupações adotadas pelas vertentes "biológico/comportamentalista" e "economicista" no estudo sobre o tema velhice. Nesse sentido, a perspectiva "socioculturalista" argumenta que, embora as questões demográficas e/ou econômicas sejam aspectos plausíveis como justificativa de reformulação de políticas públicas dirigidas à população idosa, elas são insuficientes para revelar e explicar a totalidade dos fatos que emergem da velhice como categoria analítica. De acordo com Debert (1999), (...) explicar por razões de ordem demográfica a aparente quebra da "conspiração do silêncio" em relação à velhice é perder a oportunidade de descrever os processos por meio dos quais o envelhecimento se transforma em um problema que ganha expressão e legitimidade, no campo das preocupações sociais do momento .

Nessa vertente de estudos, a questão da velhice é entendida como uma construção social, em que os recortes de idade e a definição de práticas legítimas associadas a cada etapa da vida não são compreendidos como conseqüências de uma evolução científica marcada por formas cada vez mais precisas de estabelecer parâmetros no desenvolvimento biológico humano (Debert, 1998). Parte-se do pressuposto que é a sociedade/cultura que estabelece as funções e atribuições preferenciais de cada idade na divisão social do trabalho e dos papéis na família. Segundo essa autora, essas atribuições são, em boa parte, arbitrárias, porque nem sempre se firmam em uma materialidade ou em uma cronologia de base biológica quanto às reais aptidões e possibilidades, mas são reconstruídas em um tempo social essencialmente dinâmico e mutável.

O livro de Àries (1978), A história social da família e da criança, exemplifica bem esse processo de construção social das categorias de idade, ao mostrar que a criança, como categoria, não existia na Idade Média. Ao analisar o processo de sua "inserção social" a partir do século 13, Àries (1978) demonstrou que (...) a noção de infância desenvolveu-se pouco a pouco, ao longo dos séculos, e só gradualmente a criança passou a ser tratada como um problema específico. Roupas e maneiras adequadas, jogos e brincadeiras e outras atividades passaram a distinguir de maneira radical a criança dos adultos.

No mesmo sentido, Elias (1990), em seu estudo intitulado O processo civilizador: uma história dos costumes, delineou as condições estabelecidas pela modernidade, as quais contribuíram para a construção da imagem do adulto como um ser independente e de emoções controladas nesse período. Em outros termos, a conjuntura social moderna ideologicamente voltada para valorização do indivíduo e do seu agir orientado pela razão, orientou todo o conjunto de atitudes e comportamentos por meio do que passou a ser possível distinguir e identificar a categoria de adultos no contexto da modernidade.

Na França do século 19, de acordo com Peixoto (1998), a questão da velhice se impunha essencialmente para caracterizar as pessoas que não podiam assegurar financeiramente seu futuro ­ o indivíduo despossuído, o indigente ­ pois as pessoas com certo patrimônio eram designadas (...) os patriarcas com experiência preciosa (...), que detinham certa posição social, administravam seus bens e desfrutavam de respeito. Esse recorte social da população de mais de 60 anos foi acompanhado de locuções diferenciadas para tratar cada grupo de pessoas da mesma idade: designava-se correntemente como velho (Vieux) ou velhote (Viellard) os indivíduos que não detinham status social; enquanto os que possuíam eram, em geral, designados idosos (Personne âgée). No Brasil, analisa Peixoto (1998), a conotação negativa do vocábulo velho seguiu um processo semelhante ao da França, porém em período mais recente. Os documentos oficiais publicados antes dos anos 60 denominavam as pessoas pertencentes à faixa etária de 60 anos (...) simplesmente de velhas (...). Segundo essa autora, foi no final da década que certos documentos oficiais e a maioria das análises sobre a velhice recuperaram a noção de "idoso".

O termo Terceira Idade é uma construção das sociedades contemporâneas e vem sendo empregado por acreditar-se que é isento de conotações depreciativas e, como destacou Debert (1999), para atender a interesses de um mercado de consumo emergente. Refere-se, em geral, àqueles idosos que ainda não atingiram a velhice mais "avançada", estão na faixa dos 55 aos 70 anos, e inclui, fundamentalmente, indivíduos que ainda têm boa saúde e tempo livre para o lazer e para novas experiências nessa etapa da vida.

Finalizando, pela leitura de duas obras, A velhice, de autoria de Simone de Beauvoir (1976), e Memória e sociedade ­ lembranças de velhos, escrita por Ecléa Bosi (1983), pode-se identificar uma quarta perspectiva de análise, que adota uma abordagem "transdisciplinar" do processo de envelhecimento e distingue-se do conjunto bibliográfico apresentado anteriormente, por não depositar maior ênfase em determinado segmento da realidade vivida pelos velhos.

Nessa perspectiva, a velhice é percebida como fenômeno natural e social que se desenrola sobre o ser humano, único, indivisível, que, na sua totalidade existencial, defronta-se com problemas e limitações de ordem biológica, econômica e sociocultural que singularizam seu processo de envelhecimento. Desse modo, somente uma descrição analítica dos diferentes aspectos da velhice não é considerada suficiente para explicá-la, visto que cada um desses aspectos interage com todos os outros e é por eles afetado. De acordo com Beauvoir (1976), é (...) no movimento indefinido desta circularidade que se deve apreendê-la.

Tanto Beauvoir (1976) quanto Bosi (1983) concluíram em suas obras que, em relação à velhice, a sociedade formula uma série de clichês baseados no fato de que, quando se considera o homem idoso um objeto da ciência, da história e da sociedade, procede-se a sua descrição em exterioridade, isto é, o idoso é descrito pelo outro e não por ele próprio. Entretanto, advertiu Beauvoir (1976), ele é (...) um indivíduo que interioriza a própria situação e a ela reage. Esse fato encerra a velhice em uma pluralidade de experiências individuais que impossibilita retê-la em um conceito ou noção ao investigá-la, deixando ao alcance do pesquisador somente a possibilidade de confrontar as diferentes experiências de envelhecimento umas com as outras, e a tentativa de identificar as constantes e determinar as razões de suas diferenças.

 

Considerações finais

As reflexões anteriores demonstraram que o fenômeno de envelhecimento demográfico e as demandas sociais específicas dele decorrentes tornaram a velhice um tema privilegiado de investigação, levando a um aumento significativo do número de obras publicadas nas últimas décadas. A constatação de uma lacuna epistemiológica expressa pela ausência de estudos que abordem as implicações teóricas e práticas relativas a essas obras, conduziu ao esforço de uma reflexão sistemática das mesmas, buscando identificar os elementos que fundamentam as diferentes perspectivas de análise e sua relevância para atual conjuntura da sociedade. Desse esforço resultou a identificação de quatro perspectivas de análise, a saber: a "biológico/comportamentalista", a "economicista", a "socioculturalista" e a "transdisciplinar".

Partindo da premissa de que os fatos que cercam a velhice, assim como qualquer outro fenômeno da realidade, são infinitamente mais ricos e mais complexos do que o discurso científico sobre eles, e de que qualquer modelo ou teoria é eficaz à medida que efetua a aproximação entre o fenômeno investigado e a realidade na qual se insere, pode-se inferir que aquelas obras que priorizam determinado aspecto da velhice, seja ele biológico/comportamentalista, econômico ou sociocultural, apresentam maior probabilidade de se distanciar da complexidade dos fatos que cercam o processo de envelhecimento.

Esse distanciamento revelou que, se por um lado permite ao investigador aprofundar os conhecimentos sobre o aspecto selecionado, por outro pode ser interpretado de forma equivocada por aqueles que, intencionalmente, pretendem legitimar um discurso reducionista acerca da problemática da velhice.

No sentido oposto, as análises sobre aqueles trabalhos que adotam uma perspectiva transdisciplinar, na qual a velhice é concebida como resultado dialético de necessidades fisiológicas, simbólicas e estruturais, combinadas e justapostas pelos atores sociais em meio a condições contextuais vigentes, apontam para a possibilidade de uma maior aproximação com a realidade em função da complexidade de fatores considerados. Entretanto, observou-se que esse tipo de abordagem esbarra em questões teórico-metodológicas, pois, conforme mencionado, encerra a velhice em uma pluralidade de experiências individuais que impossibilita retê-la em um conceito ou noção ao investigá-la, restando ao pesquisador somente a possibilidade de confrontar as diferentes experiências de envelhecimento umas com as outras, e a tentativa de identificar as constantes e determinar as razões de suas diferenças.

Dessa forma, este trabalho conclui por um impasse acerca de qual seria a perspectiva mais apropriada para analisar o fenômeno da velhice e aponta para necessidade de se ampliar e aprofundar o debate acerca das implicações teóricas e práticas relativas a cada perspectiva analisada.

 

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Veras RP 1977. Transtornos mentais em idosos, pp. 15-40. In Veras RP (org.). Terceira idade: desafios para o terceiro milênio. Relume-Dumará, Rio de Janeiro.

Veras RP 1994. País jovem com cabelos brancos: a saúde do idoso no Brasil. (2a ed.). Relume-Dumará-UERJ, Rio de Janeiro, 225pp.

 

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